Alguns sentimentos são difíceis de expressar em palavras. De vez em quando, sinto um repentino senso de familiaridade que gera um profundo anelo que não consigo nem expressar nem satisfazer. Isso acontece diante de um fogo crepitante na época do Natal, ou numa calma tarde de outono enquanto o sol vai sumindo no horizonte. Isso acontece quando vejo o céu nublado e morros áridos, ou quando ouço certos estilos musicais, ou sinto o cheiro de grama recém-cortada num anoitecer quente de verão. Isso me acontece quando volto à casa onde cresci ou me lembro de amigos de infância. Em cada uma dessas situações, sinto algo familiar, mas que está ausente.
Em um nível muito mais elevado, todos nós experimentamos aquilo que C. S. Lewis chama de “nostalgia vitalícia”.[1] Ela se origina de nosso anelo inexprimível de sermos reunidos a alguma coisa no universo da qual nos sentimos isolados – algo familiar, mas que nos falta. Essa alguma coisa, evidentemente, é Deus. Ele nos criou à sua imagem, de forma que devemos encontrar a nossa fonte de descanso nele mesmo. Mas nós nos separamos dele, e, desde então, temos vivido com esse isolamento.
Em 2012, uma senhora idosa da cidade de Borja, Espanha, percebeu que um afresco em uma das paredes estava parecendo um pouco apagado. O afresco, Ecce Homo, representava Cristo diante do tribunal de Pôncio Pilatos.[2] A mulher, por conta própria, tentou restaurar uma obra de arte quase centenária. O resultado foi desastroso. De acordo com uma reportagem, ela transformou a pintura em algo que parecia um “porco-espinho inchado”.[3] Infelizmente, assim somos nós. O pecado nos desfigurou de tal forma que é impossível sermos reconhecidos. Como resultado dessa desfiguração, perdemos a vida de Deus e o prazer de Deus, e esse isolamento nos levou a nossa “nostalgia vitalícia”.
Mas a história não acaba aqui. Misericordiosamente, o Filho de Deus se aproximou de nós por meio da encarnação. Ele, que criou todas as coisas, foi carregado no ventre de uma mulher, e ele, que sustenta todas as coisas, foi carregado nos braços de uma mulher. Ele se vestiu de nossa humanidade – corpo e alma. Ele chegou tão perto ao ponto de participar da vida num mundo decaído, carregou nosso pecado e vergonha, e provou a morte em nosso lugar. Ele foi esmagado, para que pudéssemos ser curados; humilhado, para que pudéssemos ser exaltados; condenado, para que pudéssemos ser justificados. Naquele momento de completa escuridão e abandono na cruz, ele comprou o prazer de Deus para nós – a restauração e a reconciliação. Seu perdão agora substitui nossa pecaminosidade; seu mérito eclipsa nossa culpa; e sua justiça oculta nossa indignidade. Sua “misericórdia abundante” apaga nossa multidão de “transgressões” (Sl 51.1).[4]
Em virtude da nossa união com Cristo, nós nos aproximamos de Deus e encontramos nele tudo que jamais poderíamos desejar: um bem eterno e espiritual, adequado a todas as nossas necessidades. Nosso conhecimento desse Deus propaga em nossa alma uma paz satisfatória nesta vida e um sabor irresistível daquilo que nos aguarda na glória. Uma vez que voltamos à nossa fonte de descanso, vivemos antecipando a visão beatífica – o dia em que veremos a Deus (Mt 5.8). De certa forma, nós já o vemos agora com os olhos da fé, mas isso não é nada em comparação com o que está por vir. No presente, vemos as perfeições de Deus em seus efeitos, ou seja, em suas obras da criação, providência, e redenção; mas, no futuro, nós o veremos de forma perfeita.
Nós seremos como Cristo, e, por isso, seremos capazes de comungar com Deus nas mais plenas capacidades da nossa alma. Não haverá nada que possa obscurecer, confundir, ou atrapalhar nossa alegria nele. Nosso conhecimento de Deus será pleno e perfeito, constante e completo, resultando num deleite até agora desconhecido, quando descansarmos plena e finalmente nele. Até então, estamos numa jornada repleta de alegrias e tristezas, vales agradáveis e montanhas perigosas, conquistas animadoras e perdas mutilantes – uma viagem caracterizada pelo regozijo, pela angústia, pela busca, pelo assombro e pelas saudades.
E isso nos traz a este livro: Saudades de casa: uma viagem através dos Salmos dos Degraus. Não temos certeza absoluta sobre a razão por que estes 15 Salmos – capítulos 120-134 – são chamados de Salmos dos Degraus. Uma das explicações mais razoáveis para o termo degrau (ou subida) é que os israelitas cantavam essa coleção de salmos à medida que viajavam (subiam) para a cidade de Jerusalém para celebrar uma de suas festas anuais, a respeito das quais lemos em Deuteronômio 16.16.
Uma característica singular dos salmos em geral é que eles expressam todo o leque das emoções humanas. João Calvino se refere a eles como “uma anatomia de todas as partes da alma, pois não há emoção que se possa experimentar que não esteja ali representada como num espelho”.[5] O que é verdade a respeito do Livro dos Salmos em geral é, também, verdade a respeito dos Salmos dos Degraus em particular. Em suma, eles são um repertório da experiência humana. Eles nos conduzem numa jornada pelos muitos altos e baixos da vida. Ao fazê-lo, dão forma a nossas perspectivas, regulam nossos sentimentos e instruem nosso bom senso. Eles nos guiam no caminho dos desejos que glorificam a Deus, nas emoções que magnificam a Deus e nos pensamentos que honram a Deus. Eles nos preparam para orar com fé, à medida que nos convidam a fixar nossos olhos nos céus.
Sempre que nos sentimos afligidos em nossa jornada, temos a tendência de recorrer à qualquer coisa que acreditamos que possa nos ajudar – outra agenda, outro seminário, outro conselheiro. Mas, com muita frequência, negligenciamos a ajuda que Deus nos deu – o Livro dos Salmos, e, em especial, os Salmos dos Degraus. Neles, nos associamos com pessoas que percorreram a mesma estrada em que estamos viajando. Se ouvirmos com cuidado, eles nos ensinarão como olhar para Deus em cada circunstância da vida, e mostrarão como essa mudança em nossa perspectiva fortalecerá nossa fé e ampliará nossa esperança.
Espero que esta ênfase pastoral se torne clara à medida que você percorrer este livro, e minha oração a Deus é que ele abençoe essa jornada para o conforto espiritual do leitor e para a eterna glória de Deus.
Deus pro nobis
Prefácio do livro Saudades de Casa – Uma jornada através dos Salmos dos Degraus — J. Stephen Yuille, pp. 7-10, Ed. Os Puritanos, Recife, PE.
NOTAS:
[1] Conforme citado por Timothy Keller, The Prodigal God: Recovering the Heart of the Christian Faith (Nova Iorque: Penguin, 2008), 94–95.
[2] Ecce Homo é a tradução latina, conforme a Vulgata, da exclamação de Pilatos registrada em João 19.5. Em português, a frase é: “Eis o homem!”
[3] Sam Jones, “Spanish Church Mural Ruined by Well-Intentioned Restorer,” The Guardian (August 22, 2012), http://www.theguardian.com/artanddesign/2012/aug/22/spain-church-mural-ruin-restoration.
[4] Salvo outra indicação, todas as citações bíblicas são da versão Almeida Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil.
[5] João Calvino, Commentary on the Book of Psalms, em Calvin’s Commentaries, 22 vols. (Grand Rapids: Baker, 2003), 4:xxxvii.
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